segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Tentando entender o vazio, do Engenhão e de significados. (parte 2)

O ingresso caro afasta grande parte dos torcedores brasileiros dos estádios.

Esta reflexão, de tão óbvia e repetida, já se tornou jargão entre os torcedores, assim como algumas das suas consequências: torcida elitizada; impossibilidade de acompanhar o time em vários jogos seguidos devido ao grande impacto no orçamento; público "itinerante", o qual, por não estar familiarizado com os ritos, cantos, dentre outras manifestações tidas como típicas do ambiente, não fazem a diferença como torcida; perda e dificuldade na perpetuação das tradições; dentre muitas outras.

No caso do Flamengo em particular, creio que as consequências sejam ainda mais intensas, pois, afetam diretamente na base de construção da identidade de sua torcida.

Dentre os inúmeros motivos que nos levam a escolher o time do coração, creio que um dos mais importantes seja a afinidade do indivíduo com a identidade do clube. Esta, é constituída por símbolos - os quais não necessariamente representam fielmente o perfil da torcida como um todo - que reduzem milhões de indivíduos a uma "personalidade coletiva".

O modo como foram construídas as identidades das torcidas dos quatro grandes clubes do Rio daria um belo objeto de estudo¹, mas, para mim, o que importa agora é tentar reconhecer os "símbolos-pilares" dessas "personalidades coletivas" e refletir acerca do impacto que os ingressos caros têm sobre cada uma delas.

A identidade da torcida do Fluminense foi construída sob a imagem de uma "torcida de elite", tanto financeira quanto intelectual. De acordo com uma pesquisa² feita pelo IBOPE, os tricolores são constituídos em sua maioria por torcedores das classes A e B, ou seja, a imagem de uma torcida "bem resolvida" financeiramente tem relação com a realidade exposta pelas estatísticas da pesquisa; e como sabemos que no Brasil, quase sempre, acesso à educação de qualidade custa caro, podemos concluir que a imagem de "torcida de elite" intelectualmente também tem fundamento. É comum encontrarmos torcedores das Laranjeiras dizendo-se orgulhosos por terem a sede mais luxuosa da Guanabara ou por torcerem para o mesmo time do Chico Buarque, Jô Soares, Pedro Bial, dentre outras personalidades. 

O Vasco, dos grandes clubes do Rio, é o único sediado na zona Norte - região da cidade com menor   concentração de renda, junto com a zona Oeste -, e talvez, por isso, a construção da identidade de sua torcida se deu sob a imagem de ser "o time da zona norte", do subúrbio³, além, claro, de ser o "time de português". Como a pesquisa do IBOPE não expõe estatísticas sobre a concentração das torcidas geograficamente, e por não ter encontrado nenhuma referência a um estudo desses, ouso usar minhas impressões cotidianas como referência. De acordo com elas, a torcida do Vasco é realmente muito presente nas zonas Norte e Oeste da cidade e pouco presente entre os moradores da zona Sul; percebi também que, no bairro onde moro (Bairro de Fátima), localidade povoada por muitos portugueses e seus descendentes, há uma concentração altíssima de cruzmaltinos, a ponto de suspeitar que, aqui, sejam maioria. Ou seja, existe uma coerência entre os símbolos da torcida cruzmaltina e minhas impressões acerca dela.

A torcida do Botafogo tem em sua identidade algo muito peculiar: é a única no Rio cujos símbolos-pilares não estejam no âmbito sócio-econômico-geográfico, e sim, na esfera da personalidade do indivíduo. Normalmente, o alvinegro é conhecido (e se reconhece) por ser supersticioso; reclamão; pessimista; razoável conhecedor da história do seu clube; fanático; dentre outros. Por não poder ser analisada através de estatísticas sócio-econômicas, creio que a construção da identidade da torcida alvinegra tenha ainda mais mistérios que as outras. Fica a dica para os cientistas sociais alvinegros.

A Torcida Rubro-Negra, apesar de predominante em todas as classes sociais, teve sua identidade construída com símbolos oriundos das classes menos favorecidas economicamente. O mulambo, o favelado, o bandido, o sem-dente, o criolo, o mascote "urubu", dentre outros, são personagens-símbolos essenciais na  imagem do "ser rubro-negro". Junta-se a eles, o fato do Flamengo ser a maior torcida do Brasil - e 58% da torcida carioca² - e temos aí o "time do povo". Muitos argumentam que este título é uma falácia, já que a maioria dos sócios do clube são moradores do Leblon e adjacências, "bem-resolvidos" financeiramente. Mas essa pequena (e poderosa) parcela da torcida, não faz parte, hoje, dos símbolos-pilares da torcida Rubro-Negra. Se conectarmos as informações de que "a Torcida do Flamengo é a maioria da população carioca e predominante em todas as classes sócio-econômicas", e que "a maioria da população carioca não é 'bem favorecida' financeiramente",  vemos que há uma coerência entre a identidade da torcida e a realidade exposta pela pesquisa².

Então, por ser a torcida cujos símbolos-pilares de sua identidade sejam oriundos das classes menos favorecidas financeiramente - exatamente a parcela do público que vêm sendo excluída dos estádios -, creio que a Nação Rubro-Negra seja a mais prejudicada com tal política.

Sendo totalmente romântico, ouso dizer que no imaginário do Rubro-Negro, o Flamengo era a única chance da massa se sobrepôr à elite; a única possibilidade humana de uma certa justiça social, um pouco de socialismo no cotidiano; era a chance de muitos trabalhadores outrora explorados, irem à forra e vencerem, juntos, seus patrões; era o momento onde o favelado tinha orgulho de gritar de onde veio; do negro, em coro, gritar sem vergonha o orgulho de ser.

E agora, essa parcela da torcida, não mais se reconhece ao ver, através da televisão, o público que frequenta o estádio nos jogos. E, creio que, aos poucos, caso não haja mudança, essa identificação, esse reconhecimento, irá diminuir; e no longo prazo... não gosto nem de pensar.

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¹ Ainda não li mas, mesmo assim, sem firulas, recomendo o livro: "O clube como vontade e representação - O jornalismo esportivo e a formação das torcidas" de Bernardo Buarque de Holanda.

² http://www.netvasco.com.br/news/noticias15/arquivos/20090607pesquisatorcidas.PNG

³ Já encontrei torcedores afirmando que o Vasco seria "o verdadeiro time do povo", já que, em tese, por ser localizado numa região com menor concentração de renda, teria uma torcida majoritariamente mais pobre. Porém, por não ser usual e amplamente reconhecida, tanto pela sua torcida, quanto pelas demais, não considero esta característica como um pilar na construção da identidade da torcida cruzmaltina. Mas, para efeito de comparação, a a pesquisa do IBOPE indica que a torcida do Vasco é constituída em sua maioria por torcedores das classes A, B e C, evidenciando aí, uma diferença entre a imagem em questão e as estatísticas do estudo.